Essa entrevista aconteceu em 1999, num período de profunda angustia para o meu coração, e teve uma circulação estrondosa no meio cristão, com repercussões em muitos outros lugares, inclusive na mídia secular no Brasil.
E tudo foi tratado com toda clareza. Confissões que eu achei cabíveis foram feitas, com toda sinceridade e pertinência.
Mas ainda assim há aqueles que, tendo olhos, não veem, e tendo ouvidos não ouvem. E entram em negação, e dizem que em momento algum eu jamais falei com a sinceridade do meu coração acerca do que tinha acontecido.
Veja, leia, julgue você mesmo.
Caio Fábio.
INTRODUÇÃO
Logo que se chega na recepção da presidência da Fábrica de Esperança - única reminiscência de tempos mais generosos -, é possível perceber a diferença. O lugar onde antes aglomeravam-se os amigos e amigos que disputavam espaços na agenda do pastor presbiteriano Caio Fábio D'Araújo Filho tem seu vazio quebrado apenas pela presença da secretária e de um ou outro visitante esporádico.
O escritório amplo não mudou, mas o homem que ocupa a cadeira atrás da mesa principal, este está longe de ser o mesmo. Mais magro, os cabelos grisalhos cortados rente, o rosto abatido - resultados de um vendaval que provocou estragos, e muitos, em sua vida e seu ministério. Primeiro foi o caso conhecido como Dossiê Caimã, quando o pastor falou com políticos sobre a existência de cópias de documentos que Supostamente denunciariam a existência de contas num paraíso fiscal em nome do presidente Fernando Henrique Cardoso e outras pessoas do primeiro escalão do governo. Nada foi provado, mas o nome de Caio Fábio saiu arranhado diante da mesma opinião pública que o acolhera como referência de ética cristã. Quase simultaneamente, outro choque: o homem que, durante anos, edificou a Igreja com pregações e livros de mensagens espirituais contundentes, estava se separando por se envolver num caso extraconjugal. Se o problema com o dossiê comprometeu sua vida pública, o fim do casamento foi um golpe fatal em seu ministério. Execrado por colegas de ministério, sua saída foi isolar-se em Miami, onde, durante quase um ano, contabilizou os prejuízos psicológicos, materiais, emocionais e espirituais dos acontecimentos mais recentes.
Durante todo esse tempo, foi assaltado por um pensamento. O incomodava saber que milhões de crentes brasileiros foram pegos de surpresa por uma revelação aparentemente simples: o pastor Caio Fábio era um ser humano como todos os outros - e, como todos os outros, pecador. Era preciso dar uma satisfação a uma multidão de crentes que experimentavam a frustração e a decepção. "Ele não podia ter feito isso" passou a ser frase corrente entre igrejas, organizações evangélicas e agências missionárias.
Para conceder esta entrevista exclusiva a VINDE/ECLÉSIA, Caio Fábio pediu apenas que as fotos fossem feitas antes da conversa. Provavelmente para evitar que a câmera registrasse os momentos nos quais chorou pelas perdas, indignou-se com a hipocrisia de alguns detratores, reconheceu os erros e, principalmente, disse as palavras mais emocionadas: "Meu irmão, me perdoe."
VÁRIOS FATOS DE EFEITO DEVASTADOR ACONTECERAM RECENTEMENTE COM O SENHOR. POR QUÊ? O SENHOR ACHA QUE, EM ALGUM MOMENTO DA SUA VIDA, FOI IMPRUDENTE?
Que fui imprudente, não tenho a menor dúvida. Sempre vivi de forma extremamente prudente, fundado em alguns princípios de sabedoria bíblica, que foram as bases sobre as quais construí minha vida e meu ministério desde a minha conversão. No entanto, alguns fatos que ocorreram na minha vida nos últimos sete anos tiveram repercussão muito mais negativa e destrutiva dentro de mim do que eu mesmo consegui avaliar. Eles foram minando meu primeiro amor, minha paixão, meu compromisso com as causas que sempre abracei com a maior integridade e a maior disposição possíveis. Esses fatos se encavalaram de maneira muito sutil, imperceptível. No processo, você não consegue discernir exatamente o que está acontecendo. Lá na frente, infelizmente quase sempre depois que tudo acontece, você olha para trás e vê o encadeamento que as coisas tomaram, e como existe uma certa lógica psico-existencial naquelas coisas todas. Essa lógica não justifica em nada o que aconteceu, apenas ajuda a fazer uma auto-análise, entender os processos nos quais fui tanto vilão quanto vítima de mim mesmo.
O SENHOR FALOU QUE TUDO ACONTECEU DE SETE ANOS PARA CÁ. QUAL SERIA O PONTO INICIAL DESTA SUCESSÃO DE INFORTÚNIOS?
Eu fiquei dois anos na Califórnia, de 1988 a 1990. Até ali eu tinha um ministério extremamente pastoral, teológico, reflexivo. Estava envolvido em grandes eventos como evangelista. Recebia convites do Brasil inteiro, atendia os que eu podia e viajava muito. Mas era uma atividade eminentemente pastoral. Durante o período em que estava nos Estados Unidos, recebia jornais do Brasil, e comecei a ficar assustado com o mercantilismo que começava a prevalecer no meio evangélico. Senti-me desafiado a voltar para o Brasil e desenvolver um ministério que não fosse tão discreto. Vim com a disposição de colocar meu ministério para o lado de fora dos portões da igreja, fincá-lo no meio do mundo. Pensei: "Sei que Deus me deu conteúdos coerentes com a Palavra de Deus, e quero que isso seja colocado no meio da sociedade." Só que, aos poucos, esse ministério foi ficando extremamente empresarial. Para ter agilidade e efetividade, eu precisava me estruturar. Assim, de uma organização com vinte funcionários até 1990, Vinde passou para 400 em 1995. Você olha para tudo como ministério, mas é cobrado de forma empresarial. Isso corroeu algumas dimensões interiores na minha vida.
E AS OUTRAS RESPONSABILIDADES QUE O SENHOR ASSUMIU? ALGUMA DELAS TAMBÉM CONTRIBUIU PARA ESTE PROCESSO DE CORROSÃO INTERNA?
Eu jamais deveria ter aceito a presidência da Associação Evangélica Brasileira. Acredito na missão da AEVB, fui um dos fundadores e, provavelmente, o maior incentivador. Investi muito dinheiro para que ela começasse a andar. Mas no dia em que me elegeram presidente por aclamação, meu coração entrou num desassossego tamanho que eu escrevi até uma pequena poesia e li 20 minutos depois, quando estava tomando posse, dizendo que estava mudando de biribá a fruta-de-conde. Biribá é uma frutinha do amazonas que tem cara de fruta-de-conde, mas é mais selvagem. O sabor é um pouco mais escrachado que o da fruta-de-conde, que é muito mais disciplinada, interiormente mais organizada. A carninha branca da fruta-de-conde é densa, a do biribá é melada, só que mais doce. Sentia-me como se tivesse nascido biribá, mas, de repente, me vestido de fruta-de-conde. Minha oração era que Deus me ajudasse a não esquecer que eu era biribá, e não tinha nascido para organizações políticas. Senti-me inadequado para presidir uma associação no contexto evangélico brasileiro, multifacetado e, às vezes, autofágico, e ter que levar esta organização para a sociedade, lidando com um país perverso em suas instituições e nos seus jogos políticos. Tive medo que aquela coisa me comesse por dentro, e comeu.
O PROBLEMA COM A IGREJA UNIVERSAL FOI CAUSADO POR ISSO?
Fiquei com a cara na janela, fiz coisas que me fizeram mal, me prejudicaram. Aquela foi uma guerra que não ajudou ninguém, não melhorou a Igreja. Talvez, a médio prazo, tenha feito algum bem à Igreja Universal porque foi uma referência importante para começarem a reorientar alguns dos seus procedimentos. Mas as coisas não precisavam ter acontecido como aconteceram. Fiquei em depressão. Quando aquela briga se tornou pública, lembrei-me daquele quarto de oração que eu tinha em Manaus, dos anos de jejum, busca de Deus, pregação da palavra, e falei: "O Senhor não me chamou para isso." Para fazer papel de fruta-de-conde, o biribá se violenta. Ser ferido pelos outros faz muito menos mal do que ser ferido por você mesmo. Isto deteriora o respeito próprio porque você age contra a consciência.
O SENHOR ACHA QUE, NESTE CASO DA IGREJA UNIVERSAL, AGIU PRESSIONADO PELAS EXPECTATIVAS QUE TINHAM A SEU RESPEITO? O SENHOR FARIA DE OUTRA FORMA HOJE?
Antes de ser eleito presidente da AEVB, quando voltei dos Estados Unidos, procurei o bispo Edir Macedo. Trocamos impressões, mas tudo numa boa, conversando. A Universal tentou entrar na AEVB já no dia da criação, como membro, mas houve uma reação interna tão negativa que achei melhor esperar um pouco mais. Continuei conversando com eles. Só que algumas coisas da Igreja Universal tornaram-se públicas. Em certos casos, a Iurd recebeu o justo castigo da mídia, mas outros eram fruto do preconceito da burguesia carioca e paulista, assustada com o crescimento de um suburbano como Edir Macedo, que estava fazendo frente a grandes impérios econômicos e de comunicação do país. Como presidente da Associação Evangélica Brasileira, eu recebia muita pressão. Era gente que dizia: "Tem que se manifestar, mostrar o limite, dizer que não somos iguais, que nossas práticas ministeriais são diferentes." Tenho arquivados vários faxes. Na hora em que a mídia começou a pressionar, achei-me amparado para ir à público e dizer: "Não nos coloquem nesse pacote." Ao fazer isto, comecei a receber respostas negativas. Ao invés de me aquietar, sucumbi àquela volúpia. Como tinha nome, integridade, crédito e respeito, achei que tinha que ir até o fim.
O SENHOR NÃO ACHA QUE SUPERESTIMOU SEU PAPEL?
Eu achava que estava fazendo alguma coisa politicamente necessária, ou seja, ver quem estabeleceria as referências para a Igreja Evangélica no Brasil. Mas aquele jogo de forças também era resultado da insegurança de muitos líderes evangélicos frustrados, ciumentos, que estavam vendo um grupo crescer tanto e não queriam perder seus nichos. Ainda havia a mídia sedenta de informações, e dentro de mim havia uma certeza enorme, mas idiota, arrogante e pecaminosa, de que, se alguém que tivesse que dar cara ao movimento evangélico no Brasil, que fosse eu, porque me considerava alguém de quem a Igreja não iria se envergonhar. Só que esse pacote todo, fechado dentro de mim, tirava a simplicidade das minhas motivações, dos meus objetivos, do meu senso de missão na vida, que havia me orientado até ali. Quando a briga veio para a fase final, fiquei muito magoado ao ver muitos daqueles que me mandavam faxes cobrando um posicionamento pulando fora. Alguns até diziam: "Eu acredito em tudo que você está dizendo, mas não ponho a minha cara aí, não." Ficaram uns poucos que nem foram notados porque a figura isolada no conflito acabou sendo a minha.
A CARA NA VITRINE ERA A SUA, NÃO?
Era. Quando passou tudo, não percebi o quão magoado, entristecido, desapontado e desencantado fiquei. Mas, uns três meses depois, comecei a ver que aquilo tinha conseguido triturar o meu romance com a Igreja Evangélica.
O SENHOR NÃO TINHA PERCEBIDO ANTES QUE ALGUMAS DESSAS PESSOAS NÃO MERECIAM SUA CONFIANÇA?
Eu era biribá, não nasci fruta-de-conde. Mesmo durante a adolescência e a primeira juventude, eu era um biribá pecando. Acho que minha mente começou a ficar mais maliciosa de uns três anos para cá. Antes, eu entrava de peito aberto, falava o que acreditava e achava que as pessoas também eram assim. Fato é que aquilo teve um papel devastador, pois relativizou dentro de mim alguns dos meus compromissos.
ONDE O SENHOR SENTIU QUE HOUVE UM AFASTAMENTO MAIOR: ENTRE OS LÍDERES EVANGÉLICOS, ENTRE OS POLÍTICOS COM OS QUAIS O SENHOR TINHA UM CONTATO ESTREITO OU ENTRE OS MEMBROS COMUNS DA IGREJA?
Os membros comuns tiveram a sua reação, uma multidão apoiando, outra achando que não devia estar sendo feito daquele jeito. O povo em geral é muito mais sábio do que a liderança porque existe menos politicagem na vivência da fé. Dos líderes políticos do país, a maioria gostou. Lembro-me quando eu ia ao Congresso, muitas pessoas vinham se solidarizar. A liderança evangélica é que tinha essa atitude de coxear entre dois caminhos, o que não é novo. Elias já falava sobre isso. Depois de tudo, muitos vieram como se não tivesse acontecido nada.
"Você é nosso líder, nós ficamos do lado de lá apenas porque tínhamos interesse." Às vezes falavam assim, descaradamente, quais eram os interesses que os tinham forçado a ficar do lado de lá, mas que era a mim que apoiavam. Só que eu estava tão machucado, tão magoado, que me isolei. Ali acabou qualquer desejo de relacionamento comunitário com a liderança evangélica. Cada vez mais concentrava amizades fora do ambiente das lideranças evangélicas. Selecionava irmãos ou alguns amigos de longa data, mas fugi bastante de qualquer convívio com a liderança evangélica.
O SENHOR QUERIA VOLTAR A SER BIRIBÁ?
Sim, mas não sabia como porque tinha criado uma casca de fruta-de-conde muito densa, que eram as organizações Vinde, com todas as implicações empresariais. Por mais que quisesse voltar àquela simplicidade, não tinha dinheiro para desmontar o que havia construído. Depois desse isolamento, começou o convívio com o Betinho, com o Rubem César e os movimentos que foram criados no Rio, a nossa ação lá em Vigário Geral, criando a Casa da Paz, depois o Viva Rio, do qual participei muito intensamente, e o surgimento da Fábrica da Esperança com tudo que ela gerou. Ainda havia minha ação nos presídios, a conversão de Nilo Batista e a posição estratégica em que ele me colocou dentro do estado - com telefone vermelho na minha mesa para resolver o que eu bem entendesse com uma facilidade enorme -, o movimento Rio Desarme-se, com o impacto que ele trouxe em todos os sentidos. Foram movimentos feitos, na sua maior parte, por cristãos que atendiam o meu apelo para envolver-se naquilo. A cada sucesso de um evento daqueles, ficava mais claro para mim que eu podia ser profundamente cristão longe daquele contexto de certas lideranças evangélicas que me faziam mal.
O SENHOR DEIXOU DE ACREDITAR NA IGREJA?
Sempre acreditei, acredito e vou acreditar na Igreja como expressão do Corpo de Cristo, resultado de pessoas que conheceram a graça salvadora de Deus em Jesus e a ela responderam positivamente, gente que deseja caminhar na terra com fé, na direção da eternidade, e, enquanto caminha, identifica a mesma fé em outros e os chama "irmãos". Para mim, isso é Igreja.
ESSE TIPO DE LIDERANÇA QUE O SENHOR CRITICA CRESCEU OU O PÚBLICO EVANGÉLICO CONSEGUE DISCERNIR ENTRE LÍDERES ÉTICOS E NÃO ÉTICOS?
Acho que a situação piorou, e o sindicato de pastores é demonstração disso. A coisa está caindo no nível do corporativismo sindical, completamente diferente daquilo que eu me lembro quando eu me converti. Certa madrugada, com meu coração abrasado por Jesus, vi um cartão com uns pescadores puxando uma rede, escrito assim: "Para aqueles que trabalham para Deus, basta o privilégio de um dia o haver conhecido." Aquilo inundou minha alma. Esse tipo de cartão, a igreja não faz mais. Agora é: se você conhece a Jesus, vai ficar muito rico. É Deus pagando para você ser crente, e não você servindo a Deus pelo privilégio de o conhecer. E os mecanismos de alienação, manipulação e indução são muito mais fortes hoje do que no passado. Milhares amam Jesus e são sinceros, mas muita gente não sabe discernir a mão direita da mão esquerda porque é orientada por lideranças para as quais o importante é a realização de alguns objetivos, não importa como chegar lá.
E A IGREJA TEM ALGUMA SAÍDA?
Digo uma coisa com extrema humildade, temor e tremor - hoje sou um profeta mortalmente ferido, mas não deixei de ver as coisas: para mim, só uma reforma profunda, guiada pelo Espírito Santo, lavando esse lixo todo, pode salvar o que a gente chama hoje Igreja Evangélica. Do contrário, assim como Deus abandonou o judaísmo, que um dia foi seu porta-voz, e instituições históricas que começaram como um movimento e terminaram como mausoléus religiosos, ele não teria qualquer problema de incitar o surgimento de expressões de fé genuinamente cristãs, mas que não se chamem pelo nome Igreja. Do jeito que as coisas vão, se não houver uma virada, eu diria tão profunda quanto a do século 16, vamos assistir à medievalização das práticas evangélicas, com perda de conteúdo: felicidade, amor, misericórdia, solidariedade e pureza diante de Deus, que são as marcas distintivas e revolucionárias da Igreja.
O SENHOR VÊ PESSOAS HOJE NA IGREJA BRASILEIRA QUE PODEM FAZER ESSA DIFERENÇA, QUE PODEM SUSCITAR ESSE MOVIMENTO?
Eu estava lendo a revista VINDE sobre o movimento nas favelas do Rio, que durante uns dois anos eu conheci bem. Se hoje me perguntarem quem é o meu herói no meio evangélico, vou dizer: "É o Pedrão do Boréu." Pessoas como ele eu respeito. Fazer politicagem aqui e ali e chamar isto Reino de Deus não passa, na verdade, de reinado humano para afirmação de egos insaciáveis. Aqui estou fazendo uma autocrítica, pois fui vilão e vítima de mim mesmo neste processo.
O SENHOR CHEGOU A SE ARREPENDER DE TER PARTICIPADO DE ALGUMA COISA?
O episódio da Igreja Universal. Depois daquela depressão enorme que senti, a prova de que me arrependi é que você pode pegar os jornais de 1992 a 1994 e me verá beligerante. Mas de 1995 para frente, era um assunto de que não falava mais porque pensava: "Não é um tema que interesse ao Espírito Santo, e não quero mais estar no meio dessa briga."
ISTO SIGNIFICA QUE O SENHOR FARIA TUDO DE FORMA DIFERENTE HOJE?
Acho que a maioria das coisas que fiz teve seu lugar de importância. A motivação em função das quais elas foram feitas e o modus operandi de muitas delas é que foram equivocados.
ALGUMA DELAS O SENHOR NÃO FARIA OUTRA VEZ, NEM DE FORMA DIFERENTE?
Várias delas. Por exemplo, não aceitaria ser presidente da Associação Evangélica Brasileira. Eu seria fundador, membro da diretoria, ajudaria no que pudesse, mas tinha que haver alguém ali com uma história diferente da minha. Eu era anarquista demais, hippie demais, biribá demais para ter ficado ali. Não estou dizendo que, para você presidir uma entidade de classe, de representação, você deva ter coisas negativas dentro de si, pelo contrário. Tem gente que Deus levantou para fazer isso. Gente que tem suas próprias dinâmicas interiores e de caráter sólidas o suficiente para poder lidar com isso e se manter razoavelmente inteira. Não era o meu caso. Aquilo foi matando minha doçura.
SÓ ISSO?
O caso da Universal é outro. Hoje eu não entraria jamais naquilo. Eu continuaria fazendo o que fazia antes, e que era muito mais de acordo com meu perfil. Conversar, visitar, bater papo, ser honesto e dizer: "Olha, não concordo com isso. Não sou o dono da verdade, mas acho que o que digo tem coerência com centenas de anos de história da fé. Cuidado com isso etc." Mas não iria para aquele tipo de ringue, lutar 12 rounds, para sair todo mundo arrebentado e nada de bom ter ficado.
E O CASO DO DOSSIÊ CAIMÃ? SERIA OUTRA COISA QUE O SENHOR NÃO FARIA NOVAMENTE?
Eu fico pensando como é que fui entrar em algo tão diabólico, tanto em suas tramas como em suas conseqüências.
COMO FOI O PROCESSO DE ENVOLVIMENTO COM ESTE EPISÓDIO?
Da minha parte, foi acidental. Mas há um contexto espiritual muito forte. Eu já vinha completamente desmontado desde o início do ano passado. Como já mencionei em mensagem que circulou pela internet, foi quando tive minha queda moral num relacionamento fora de meu casamento. Isto teve um efeito devastador, suicida. Se eu não fosse crente mesmo, não amasse meus filhos, meus pais, que são muito importantes para mim, se não tivesse essas referências, depois que tudo aquilo aconteceu, eu sabia que, vindo a público ou não, eu nunca mais seria o mesmo homem. Dentro de mim, o mundo já tinha se arrebentado. Foi quando ouvi pela primeira vez, de um irmão depois de um culto nos Estados Unidos, sobre os papéis que diziam que o presidente teria contas no exterior com alguns amigos. Nada fiz a respeito durante alguns meses, mas ele me procurou outras vezes. Não quero entrar em pormenores da história, até porque estou proibido por meus advogados de falar. Mas o fato é que, depois que falei para uma figura política elevadíssima, ele mandou outra pessoa conversar comigo. Acreditei que a informação que eu havia recebido era verdadeira. O que eu não sabia era que iria ficar no centro daquele tufão e que iria ser acusado de calúnia por uma coisa que só falei em particular e com um grupo muito reduzido.
O SENHOR TINHA IDÉIA DA REPERCUSSÃO QUE O EPISÓDIO PROVOCARIA?
Não. Para mim aquilo era algo que, se verdadeiro, era importantíssimo, e, se falso, deveria ser esquecido. Mas houve muita insistência para eu ir e descobrir. Fui até certo ponto. Depois vi que havia entrado num caminho que, para mim, era estranho e desconhecido. Foi quando parei completamente. Dou graças a Deus que a coisa tenha explodido daquele jeito, que meu nome tenha aparecido de uma maneira ruim, mesmo não condizendo com os fatos em si. Meu nome veio embolado em um monte de coisas que eu nem tinha idéia de por que estavam acontecendo daquele jeito. Hoje olho para trás e agradeço o juízo divino. Agradeço a Deus pelo fato de o nome que construí durante 25 anos ter sido tão destroçado. Agradeço por esta fraqueza imposta, porque uma pessoa como eu, para ser curada de suas dores, mágoas, ressentimentos, tristezas e descrenças em relação a muitas coisas, precisava ser desconjuntada. Agradeço a Deus por ter jogado o mundo em cima de mim. Está sendo muito mais fácil, no pó, olhar para ele - infelizmente, não com as boas causas de Jó - e dizer: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te vêem. Eu sei o quanto o senhor me ama porque o Senhor disciplina o filho a quem ama."
O SENHOR FOI MUITO CRITICADO...
Sim, sei que fui. É natural que seja assim. Entretanto, fico vendo a quantidade enorme de pessoas que passam pela vida fazendo safadezas, e que, mesmo assim, criticam como se fossem santos. O problema é que me lembro do que eles me falavam ou deles se falava a mim. Mas cada um sabe de si diante de Deus. Um dia a Luz vai prevalecer sobre as nossas trevas e hipocrisias. Eu conheço centenas de pessoas criticando e esquecidas de si mesmas. Eu sei o que fiz e, diante de Deus, choro minhas angústias. Possivelmente não há pastor no Brasil que tenha ouvido mais confissões de pastores do que eu, de outros que foram afetados por certos líderes da pior maneira possível, de trambiques a abusos sexuais, casos de dez, 12, 15 anos que aconteciam atrás do púlpito, e que vão morrer comigo. Mas agradeço a Deus porque, na primeira vez que botei o pé fora, o mundo caiu logo sobre minha cabeça. Seria diabolicamente perverso se não tivesse acontecido nada. Aí você vai ficando cínico. Hoje agradeço todo dia porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito para morrer por mim, e me amou tanto que pegou o mundo todo e jogou sobre minha cabeça. De um lado, fui salvo do mundo. De outro, Deus pegou o mundo que estava me devorando e colocou na minha cabeça para me acordar. Sem dúvida, tem muitas coisas que eu não faria outra vez.
O SENHOR ACHA QUE O CASO DO DOSSIÊ CAIMÃ FOI O QUE MAIS PREJUDICOU SUA VIDA?
Não. O Dossiê Caimã foi Deus me encurralando para dizer: "Eu te fiz para uma coisa, e você vai viver e morrer me servindo." Sei que, se ganhasse gosto por política, me desculpe a falta de modéstia, mas eu sou mais eu do que essa moçada todinha. Sei que Deus me fez para comunicar com o povo, para vender um sonho, uma paixão, para falar, para convencer, para pregar. Só que ele me deu esse dom para usar para a glória dele, para anunciar o Evangelho, não para vender ilusões. Não estou dizendo que todo político vende ilusões. Conheço gente que está querendo fazer as coisas certas. Mas, para mim, seria me arrastar daquele fluxo para o qual Deus me havia ungido. Do ponto de vista da minha alma, talvez estivesse morto. O Dossiê Caimã me fez mau, não tenho o menor orgulho disso. Tenho vergonha dessa história. Aquele não era o lugar para eu estar como homem de Deus, e eu não estaria ali se não fossem os episódios anteriores que me tiraram do caminho.
O SENHOR FALA EM FATOS QUE DESVIARAM A SUA ROTA. ATÉ QUANDO O SENHOR ACHA QUE FEZ DE FATO AQUILO PARA QUE DEUS O HAVIA CHAMADO?
Cumpri meu chamado com integridade até 1992. Daí em diante, continuei a viver minha vocação, mas fui agregando a ela uma série de outros elementos que, em si mesmos, não eram ruins, mas não eram aqueles que Deus planejou que fizessem parte da minha vida. Coisas que, para outros, são muito boas transformam-se num elemento canceroso quando entram na sua vida sem ser porque Deus as colocou ali. Foi gradual, não aconteceu do dia para a noite, e a metástase também não foi generalizada, mas localizada. Continuei, neste aspecto, a ser quem eu era. Sou uma pessoa que se compadece com facilidade, não consigo passar alheio à sorte dos outros, amo a pregação da Palavra de Deus mais do que qualquer outra coisa na vida. Não foi de súbito que as coisas foram mudando. E aí estão os mecanismos de engano mais sutis: você olha para dentro de si e vê tantas coisas originais que parecem legitimizar as entradas posteriores que não tinham conexão com a vontade expressa de Deus para sua vida, mas estavam ali, sendo abençoadas pelos dons originais que Deus dera a você. Você não enxerga de cara que, de fato, elas são peso morto e trabalham contra sua existência.
ISSO EXPLICA OS ERROS QUE O SENHOR ADMITE TER COMETIDO?
Veja bem, isso não é nenhuma justificativa. Ninguém que esteja lendo pense: "O pastor Caio está querendo se explicar ou se justificar." Estou apenas querendo dizer que sou lógico demais para simplesmente dizer que foi o diabo que colocou na minha cabeça, aí eu saí e fiz. Eu participei, e o fiz de um modo que me permite ver uma linha com começo, meio e fim, com causas e efeitos, um fenômeno explicável, racional.
FOI TAMBÉM ASSIM NO PROCESSO QUE CULMINOU EM SUA SEPARAÇÃO?
Se não tivesse acontecido o deslize na minha conduta sexual, eu não teria sofrido o impacto suicida e autodestrutivo que sofri, e não teria a idéia de que meu ministério simplesmente acabara, pois o povo evangélico jamais me perdoaria. Ele era capaz de perdoar muita gente, mas não a mim. Eu era a referência de muita gente. É como se essas pessoas ficassem órfãs, fossem traídas. Eu não tinha muito direito a viver as ambigüidades de minha humanidade. Aí pensei: "Está acabado."
COMO O SENHOR REAGIU DIANTE DA IMINÊNCIA DO FIM DE SEU CASAMENTO?
A pior coisa que aconteceu foi minha separação da Alda. Posso dizer que não são apenas duas pessoas cristãs se separando. Isso acontece todo dia, é horrível, mas não chega a ser tragédia nacional. Mas, no meu caso, havia outros elementos que geravam um desconforto generalizado. O pior é que a separação foi provocada por uma queda de minha conduta pessoal. Um pastor divorciar-se é triste, mas um pastor como eu se separar por conduta sexual pecaminosa, fora do casamento, é muito pior, e tenho consciência deste fato. Nunca vou brincar com isso. Foi por este motivo que, quando aconteceu, cancelei todos os eventos que tinha, e só falei no congresso da Vinde em outubro daquele ano porque minha esposa pediu. Eu disse: "Não subo ali. Enquanto Deus não me restaurar, pelo menos quero ser coerente." Eu estava em Nova York, tinha arranjado uma desculpa para não ir. Mas ela me ligou, insistiu muito. "Venha, por favor." Quem ouve a fita da mensagem sente claramente como uma despedida. E, de fato, disse ali tudo o que achava importante dizer antes de morrer. Porque era assim que eu estava me sentindo: como se estivesse a caminho da morte.
SEU DESVIO DE CONDUTA FOI O ÚNICO MOTIVO DE SUA SEPARAÇÃO?
Não. É claro que uma relação fora do casamento raramente é a causa da separação. Em 90% dos casos é efeito. Não quero dar mais detalhes porque tenho que proteger pessoas que amo mais do que outra coisa qualquer na terra: meus filhos e a Alda, a quem eu amo muito e vou amar a minha vida inteira. Havia problemas, mas nada cabeludo. Pelo contrário, meu casamento era o sonho da maioria das pessoas que nos conheciam. Só que, dentro de mim, eu vivia outros processos anteriores ao casamento. Uma história muito longa, que não vem ao caso falar agora. Sempre amei a Alda. Na medida em que os anos passaram, a amei cada vez mais. Mas eu continuava ansiando por uma expressão de relacionamento conjugal que, por culpas imensas, por traumas absolutamente esmagadores do ministério e por cerceamentos de liberdade, foram lentamente diminuindo nosso sentido de intimidade conjugal. Todos esses outros episódios que mencionei desestruturaram aquela noção de ninho familiar. Tem gente que vive a vida inteira desse jeito, mas nós não somos assim. O que a gente chama família éoutra coisa, que foi desmontando. O que as pessoas devem aprender com a minha tragédia pessoal é que você nunca desorganiza completamente um lado da sua vida e consegue manter o caos confinado naquela área. Vaza para todas as outras áreas.
O SENHOR DIRIA QUE O FIM DO SEU CASAMENTO FOI O PREÇO QUE O SENHOR PAGOU POR TER SE DEDICADO TANTO AO MINISTÉRIO?
Eu não gostaria de pensar assim. Acho que o fato de eu me ter dado também a coisas e causas que não fariam parte do meu chamado original tumultuou porque eu nunca inverti as prioridades. Nunca coloquei o ministério na frente da minha família. Eu viajava do Rio para Belém, pregava à tarde e à noite e à meia-noite eu estava em casa para botar meus filhos na cama, contar histórias para eles e fazer oração. Eu era mais presente do que 95% dos pais que eu conheço, que saem de manhã e voltam à tarde e nunca viajaram na vida, mas estão sentados ali, olhando para a televisão sem falar com os outros. Não era o meu caso. A gente estava junto, se comunicava para valer. Quando as prioridades do meu ministério se inverteram é que começaram a ter conseqüências em outros níveis da minha vida e desorganizar coisas que antes estavam no próprio lugar.
O SENHOR ACHA QUE HAVERIA OUTRA FORMA DE RESOLVER OS PROBLEMAS FAMILIARES QUE NÃO FOSSE A SEPARAÇÃO?
Acredito que sim. Passei anos da minha vida ajudando pessoas a não terem que recorrer a uma medida tão dramática. Mas o que aconteceu é que o meu pecado sexual veio apenas como expressão de um desejo físico reprimido. E, mais do que isso, veio carregado de afetividade, o que tornava as coisas muito mais complicadas, capazes de gerar mágoa naquela que foi a vítima disso tudo: minha ex-esposa.
SE O SENHOR ADMITE QUE HOUVE UM ERRO E SE SENTE INCOMODADO COM A SITUAÇÃO, O QUE PRETENDE FAZER PARA MUDÁ-LA?
Passei boa parte da minha vida resolvendo problemas dos outros. Estou vivendo um momento que deveria ter vivido a vida inteira, de acordo com aquele conselho de Paulo a Timóteo: "Cuida de ti mesmo." Preciso cuidar um pouco de mim antes de pensar quais serão as soluções. Muito mais do que como vai ser minha vida daqui para a frente e como ela vai conseguir trazer glória para Deus neste mundo, que é para o que nasci, minha preocupação é a de me vulnerabilizar ao máximo para o Senhor poder tratar de mim. Depois que tratar de mim e dos outros que foram feridos, magoados, as coisas vão encontrar o seu próprio caminho porque Deus é soberano. Não cabe a mim trazer agora soluções para um caos criado por mim. Acredito que é a voz e a Palavra de Deus que devem trazer luz e forma para aquilo que está sem forma e vazio. Só quero me oferecer como uma matéria bruta para ele, que pode fazer as coisas existirem até trazendo-as do nada. Acho que, se eu invertesse a ordem e começasse a dizer "eu vou fazer isso e aquilo", seria uma contradição com a experiência de fraqueza que eu estou tendo, e que estranhamente dói de maneira alucinada, mas faz um bem extraordinário.
E TUDO QUE O SENHOR JÁ PREGOU E ESCREVEU SOBRE CASAMENTO E RELACIONAMENTO CONJUGAL? CONTINUA VALENDO?
Claro. Mesmo neste último ano, que foi de desastres na minha vida, nunca alguém me viu abrir a Palavra de Deus e dizer besteira, sobre isto tenho certeza. Eu sei o que é a Verdade. Posso estar num manicômio babando, mas se você me der uma Bíblia, pode ter certeza: o que vai sair da minha boca tem coerência com a Palavra de Deus. E os meus livros não foram invenção minha, ou coisas que algum anjo me contou. Eles têm começo, meio e fim, estão baseados na Bíblia, e eu acredito nela. Mas a Palavra de Deus é espada de dois gumes. Ela fere quem a ouve e também quem a usa. Eu a manejava com coerência, mas quando passei a viver distraído em relação a ela, fui ferido, e dou graças a Deus por isto. Quem parar de ler meus livros pelo que aconteceu comigo está fazendo mal a si porque não é um livro segundo Caio Fábio. Não há um livro meu que não tenha base bíblica. A exceção é a minha autobiografia, uma tentativa de deixar as pessoas perceberem o quão humano eu era. Eu temia que não tivesse estrutura interior para as demandas éticas a meu respeito. A vida inteira tive medo de virar escândalo para as pessoas. Aquele livro já era a produção de um indivíduo fragilizado, quebrado, cansado, machucado, querendo que as pessoas soubessem onde eu estava e como é que eu estava. Fora esse livro, os outros eram estudos bíblicos. Minha Bíblia não se tornou menos Bíblia porque me tornei menos eu. E a Verdade que eu prego nos livros não se tornou menos Verdade porque fui incoerente com ela - pelo contrário, para mim se tornou mais Verdade e mais livre ainda porque se voltou contra mim e me tratou com imparcialidade.
O QUE O SENHOR DIRIA HOJE AO CRENTE MAIS SIMPLES, QUE O ADMIRAVA E FICOU ABALADO COM TUDO QUE ACONTECEU COM O SENHOR?
A primeira coisa que eu diria é que minha alma está arrebentada por não ter conseguido ser sábio o suficiente e abraçar apenas aquilo que Deus me deu para fazer. Porque o que me tormou referência no país inteiro não foram as minhas últimas ações. Meus equívocos só se tornaram grandes por causa das outras coisas não equivocadas que eu tinha feito a vida inteira em nome de Jesus. Então, a única coisa Ele não glorifica apenas quando todo mundo nos vê e diz: "Olhe como a vida dele glorifica Deus." Há milhões de peixinhos no fundo do mar e ninguém sabe deles, mas, para Deus, eles têm o seu significado, carregam a sua mensagem e refletem a glória do Senhor. Eu já fui baleia do Sea World, com grandes auditórios vendo as minhas peripécias. Pode ser que agora Deus queira que eu viva nas regiões abissais, onde um grupo bem menor me perceba, mas consiga ver que minha vida carrega a graça e a glória de Deus.
COMO FICA A VISÃO NACIONAL DE EVANGELIZAÇÃO?
A organização original, que deu início a várias outras coisas, continua existindo da maneira mais discreta possível. Minha irmã Ana Lúcia está tentando manter algum contato com as pessoas. Acredito que as coisas só devam ser preservadas quando elas estão carregando vida em si mesmas. Se alguma coisa agonizar é porque algum processo vital foi afetado. Não estou me esforçando para preservar a Vinde. Se Deus, na sua graça, achar que a Vinde tem futuro, ele a manterá viva, continuará levantando alguns que, apesar de tudo, vão continuar contribuindo para que a gente tenha chance de respirar, se arrumar e ver o que acontece. Se a Vinde não sobreviver, ela não é um fim em si. É só um meio, uma plataforma. Não existia antes, pode não existir depois. O importante não é a organização, mas as visões que estavam certas e vieram de Deus. Elas não devem morrer no coração das pessoas.
E A FÁBRICA DE ESPERANÇA?
No caso da Fábrica, minha irmã Ana Lúcia está tocando tudo com muita galhardia. Tem muita gente boa que consegue separar o erro do indivíduo de sua obra. Punir a Fábrica de Esperança por causa do meu erro é perverso porque, em primeiro lugar, não preciso dela para viver. Nunca tirei dinheiro da Fábrica, e espero nunca precisar tirar. Eu é que sempre coloquei recursos próprios no projeto. Havia coisas dadas a mim como individuo e eu não ficava com elas, eu botava na Fábrica de Esperança. Se pessoas estão decepcionadas comigo, não precisam punir quem se beneficia de tudo que se faz. Tentei ficar longe da Fábrica para ver se as pessoas conseguiam enxergar que ela é maior do que eu.
HÁ INICIATIVAS DO GOVERNO DO ESTADO E DA PREFEITURA DO RIO PARA COLOCAR RECURSOS NA FÁBRICA DE ESPERANÇA. ISTO PODE ESTIMULAR EMPRESÁRIOS A VOLTAR A INVESTIR NO PROJETO?
Houve quem parasse de contribuir quando ficou sabendo o que tinha acontecido comigo, e outros que pararam ao saber que eu não estava mais no projeto. Apanhamos dos dois lados. Para estimular o primeiro grupo, acabamos perdendo o outro. Todo mundo sabe que eu tenho esse pecado na minha história, mas só os muito mal-intencionados vão dizer que não vivi a minha vida inteira com honestidade, e que por causa disso tenha me tornado indolente. Quem olha as coisas com objetividade sabe que não é assim. O governador do Rio Anthony Garotinho tem sido muito carinhoso comigo, tem me ajudado como irmão. Ele diz toda hora que me deve a vida, fui eu quem o trouxe a Cristo, discipulei, batizei. Ele não esquece disso. Conversamos sobre várias idéias que podem ajudar a Fábrica. Tem muita gente que está conseguindo evitar a troca de 25 anos de trabalho por um ano de pecado e de equívoco. Creio que Deus é soberano em todas as coisas, e que um dia isso tudo ficará muito claro. Então todas as coisas, mesmo as piores, farão parte de uma grande genealogia onde até as aberrações da nossa vida se transformarão em adubo para o que vai acontecer mais na frente. Hoje leio a genealogia descrita em Mateus com muito mais quebrantamento. Quando vejo aqueles personagens da história humana, alguns que viveram para fazer coisas ruins, outros que viveram em justiça e piedade, acho que todos fazem parte do grande fluxo da bondade e da misericórdia de Deus. Nesta genealogia, um dia já fui Noé, que era um homem temente a Deus, bom, justo, que se desviava do mal. Hoje minha história é outra. Na melhor das hipóteses, eu seria um Davi, mas nem ouso dizer assim. Graças a Deus, estou longe de um personagem como Manassés. Eu queria ter continuado Noé aqui a vida inteira, mas carrego o drama de Oséias, algumas angústias de Abraão, a culpa agonizante de Davi e a angústia de Sansão, que, depois de ter sido libertador do povo de Deus, de repente viu sua força ir embora. Mas só Deus ainda dá a chance de você abraçar as colunas do templo e ser mais útil a ele na morte do que na vida. Estou pedindo para as pessoas tentarem entender o que sou e o que sobrou, mas sei que Deus não terminou os seus negócios comigo. E eu, muito menos com ele.
O QUE PREJUDICOU MAIS O MINISTÉRIO VINDE: SEU ENVOLVIMENTO NA POLÍTICA OU SUA SEPARAÇÃO?
Foram os problemas pessoais. Quanto à política, muita gente ficou triste porque antes eu só aparecia na mídia com as coisas boas, era o mocinho, o herói, o pastor ético, o cara do qual todos se orgulhavam. Eu fui muito bem tratado pela mídia, até no Dossiê Caimã. Muitos ficaram magoados, perguntando: "Por que ele está aí?" Quanto à minha separação, foi mais trágico. Se eu medir pelos e-mails, devo ter recebido uns 200 relacionados ao Dossiê e mais de 3 mil de gente desesperada para saber o que estava acontecendo na minha vida conjugal. Davi guerrear uma causa errada tem muito menos impacto do que o adultério dele com Batseba. A vida de Davi tem dois grandes eixos: a vitória sobre Golias e o pecado com Batseba. Eu sou as duas referências: o herói que cai, depois vai vivendo, e Deus, em sua misericórdia, encontra caminhos para não descartá-lo de sua graça e de sua história. Mas é óbvio que qualquer coisa coletiva equivocada que você faça tem menos impacto do que aquelas que têm a ver com a sua vida pessoal porque no meio evangélico a reputação do ministro ainda é julgada por sua capacidade de oferecer uma referência pública de vida que tenha a ver não somente com ética, mas também com sua felicidade conjugal. Há personagens bíblicos em quantidade farta que foram infelizes, tiveram tragédias pessoais, experimentaram perdas horríveis ou cometeram erros em sua conduta. Se estivessem vivos hoje, em nosso meio, faríamos tudo para nos esquecermos deles. Não apenas de seus erros, mas também do que foram e das coisas boas que fizeram. A Bíblia, porém, é diferente. Ela consegue chamar o pecado pelo nome. Ela mostra que todo dom perfeito vem do alto, do Pai das Luzes. O homem erra porque é pecador, e acerta pela graça de Deus. Quando ele erra, o erro é atribuído a ele. Quando acerta e vive para a glória de Deus, que se continue a pensar nas coisas que Deus fez naquela vida. A Bíblia tem essa sabedoria de separar uma coisa da outra, mas o meio cristão nem sempre tem. Com essas categorias cristãs vigentes, ia sobrar pouca gente na Bíblia para contar a história. Isso não é justificativa para ninguém. Só estou dizendo que a maneira da gente olhar para isso é diferente. A Bíblia sabe que, a mim, cabe o corar de vergonha, e a Deus, toda a glória. Se vivi 25 anos fazendo boas coisas que todos diziam que eram para a glória de Deus, glórias a ele. No dia que fiz a coisa errada, a culpa é minha. Agora, você pode escolher entre apagar tudo que ficou para trás e dizer que nunca existiu ou dizer: "Caiu. Que Deus o levante, trate dele e o discipline." Dou graças a Deus por tudo que aconteceu antes porque não dá para negar as milhares de pessoas que se converteram, a quantidade imensa de pessoas no ministério, os milhões de reprimidos que foram atingidos por anos e anos de pregação no Pare & Pense, a quantidade de casamentos, famílias e vidas que foram ajudadas pelo material que foi publicado. Não dá para negar como a revista VINDE é um divisor de águas em comunicação, trazendo para dentro da comunidade evangélica um senso crítico que não havia antes, e também a Vinde TV. Dá para enumerar um monte de coisas.
O SENHOR VENDEU A REVISTA VINDE. POR QUÊ?
Eu não queria vender a revista, mas tanto eu como meu filho Davi soubemos que havia alguns anunciantes, especialmente no meio evangélico, negando-se a colocar publicidade na revista por minha causa, como se o produto deles fosse ficar impuro. Não sou como aquela mulher egoísta levada à presença de Salomão dizendo que o filho era dela. Prefiro ver um filho meu vivo, criado por outros, do que ver algo que está dando certo ser decepado porque acho que é meu e ninguém tasca. Para não prejudicar o ministério da revista, eu a vendi. Do contrário, eu não faria isso porque tenho o maior prazer de pensar na VINDE como algo que Deus me ajudou a criar.
E A TV?
Negociei a TV porque não tinha meios de mantê-la depois do que aconteceu. Se não fossem os 45 dias de trituração por conta do episódio do Dossiê Caimã - e a trituração política foi maior que a da mídia -, eu teria tido paz na alma e concentração no coração para encontrar as saídas, que existiam. Na verdade, a Vinde TV estaria hoje muito maior. Justamente naquele mês em que as coisas aconteceram eu tinha conseguido fechar vários acordos com repetidoras de UHF, VHF e cabo e patrocinadores pesados. Tinha um contrato grande com a Petrobras, o Sasse, o Sebrae. Mas quando aquilo explodiu, uma das primeiras medidas desses órgãos foi cancelar os contratos em solidariedade ao presidente da república, o que me deixou nu. A solução foi procurar quem quisesse comprar.
O SENHOR ACREDITA QUE UM DIA POSSA TER NOVAMENTE SEU MINISTÉRIO RESTAURADO?
Acredito que se todas essas coisas foram realmente colocadas em minha vida como um propósito de Deus, e se ele ainda tem propósitos de que elas façam parte da minha vida, lá na frente elas voltarão. Se não, que ele me coloque no melhor lugar para eu servi-lo da melhor forma. Fazer um canal de televisão ou uma revista não é difícil. Mas a questão é se Deus me quer fazendo isso.
O SENHOR AINDA É MUITO REQUISITADO?
Recebo mensagens de pessoas de todos os lugares, e a tristeza delas é a de não saber o que está acontecendo comigo. Até dois meses atrás, confesso que não queria conversar com ninguém, não queria me expor. Estava me sentindo ferido, dolorido. Até que, em maio, tive uma experiência muito forte com Deus, que me jogou no chão por horas a fio com muita dor e muito quebrantamento. De lá para cá, meus olhos começaram a se abrir. Passei a sentir saudade dos irmãos. Comecei a acordar à noite, às vezes em prantos porque sonhava que estava pregando e, ao despertar, via que não era verdade. Tive desejo de me expressar a alguns irmãos, e autorizei que meu e-mail fosse dado a eles. Começou então uma interação grande. Justamente por isso, tenho pensado: talvez uma coisa boa a fazer é lançar uma home page minha, bem humana, relacional, atualizada uma ou duas vezes por semana, para quem quiser saber como eu estou visitá-la, deixar uma mensagem.
O SENHOR ESTÁ PLANEJANDO ALGUMA COISA ALÉM DISSO?
Não estou com grandes planos. Acho que a hora é de quietude, de sossegar o coração.
Meu padrão de vida foi reduzido a um terço do que costumava ser. Nunca vivi com luxo, mas posso dizer que tinha uma vida acima da linha da modéstia. Praticamente parei de receber dinheiro de direitos autorais de meus livros porque houve um boicote generalizado de livreiros e editoras. Soube de pastores que condenam um membro que chega na sua igreja com um livro meu. Estou vivendo do acerto que consegui fazer com a Vinde TV, que não foi coisa grande porque quem entrou no negócio encontrou uma empresa com um passivo razoável, acumulado no ano passado em meio à minha angústia de alma e toda aquela situação que me desarticulou completamente.
O SENHOR PRETENDE VOLTAR DEFINITIVAMENTE PARA O BRASIL?
Eu estava nos Estados Unidos com todos os meus filhos. Há um mês, tomamos uma decisão em família de retornar ao Brasil. Meus filhos Davi e Juliana foram os primeiros a voltar, em seguida veio o Lucas. Em outubro, o Ciro voltará e eu estarei no Brasil no fim do ano. Até lá, devo vir ao país uma vez por mês porque meu limite de distância para meus filhos é muito pequeno.
O SENHOR AINDA É PROCURADO PARA ACONSELHAR OU PREGAR?
Recebo inúmeros convites para conferências, palestras e pregações do país inteiro e até do exterior. Eu é que não aceito. Questão de consciência: tenho que cuidar de mim mesmo, e depois da doutrina. Se eu quisesse fazer o papel de cínico, fazendo de conta que não houve nada, teria uma agenda ocupada. Chegam cartas de todo lado. E uma coisa gera a outra: se eu atendesse dez convites, no mês seguinte teria uma centena. Antes, eu recebia 3 mil convites por ano. Lembro-me que, de 1989 a 1994, recebi de 30 a 40 convites de países diferentes para pregar. Seria fácil me ocupar. O problema é que, interiormente, sei que não devo. Se eu anunciasse na revista que estou aberto para ouvir pessoas que queiram conversar comigo, não tenho dúvida de que minha agenda ia lotar. Ainda é grande a quantidade de gente que, apesar de tudo, me vê do mesmo modo. Só que não estou num concurso de popularidade, nem é com isto que estou preocupado. Eu quero é que Deus trate de mim, e quero tratar de mim mesmo na presença dele, vendo o que o Senhor quer fazer. Uma vez que ele me mostre o caminho, seja grande ou pequeno, visível ou não, quero que seja algo que tenha significado para Deus, não para a opinião pública.
MUITA GENTE O EXECROU. AINDA SOBROU ALGUM AMIGO?
Sim, há pessoas preciosas, maduras, que sabem separar as coisas. Também há os imaturos ou que querem dar uma resposta imatura porque lhes é conveniente. Mas sei que o que aconteceu comigo é muito forte. Não tenho como ficar chateado com quem diz que nunca mais me verá do mesmo jeito. Não fico triste com a pessoa, mas comigo mesmo por ter criado as circunstâncias para que isso acontecesse. Tem uns que não me entristecem porque eu não os respeito. Tem várias pessoas que estão lendo agora esta entrevista e sabem que, diante do que eles fazem há tantos anos, sou apenas um otário com complexo de sinceridade e transparência. É provado que uma pessoa pode viver uma vida dúbia, escondendo e camuflando. Um dia, ela vai responder sobre isto diante de Deus, mas pode passar por aqui razoavelmente incólume na sua desfaçatez. Ouço dizer que alguns falaram certas coisas, aí eu penso: "Gente, em 1992 ele me procurou contando histórias, e eu o ajudei e orei com ele. Há um ano atrás, caiu de novo, e eu segurei a barra dele na presença de Deus". Quando ouço que um desses aí falou alguma coisa,minha tristeza não é nobre. Fico meio enraivecido de perceber hipocrisia. A história do Evangelho neste país nunca foi construída por eles. Mas os irmãos que sinceramente estão magoados porque se sentiram ultrajados pelo meu comportamento, eu os entendo e entenderei para sempre porque sei que foi grave.
LEVANDO EM CONTA A IMAGEM QUE O SENHOR CONSTRUIU DURANTE TANTO TEMPO, É POSSÍVEL HOJE APONTAR UM LÍDER QUE O SUCEDA, CAPAZ DE POLARIZAR A CONFIANÇA DA IGREJA?
Vejo pessoas com potencial de se tornar líderes bem representativos no meio evangélico. Agora,
com as características ministeriais que a minha liderança tinha, eu não vejo. Somos seres singulares. Minha história é extremamente complexa, e não vejo em líder algum tamanha complexidade. Tampouco vejo o mesmo ambiente evangélico no qual meu ministério aconteceu. Há 20 anos atrás, a Igreja era outra. Os pudores com os quais se vivia um ministério eram muito mais rigorosos. Em termos de profundidade espiritual e compromisso com a Palavra, eram mais arraigados. Sei que não fui um sub-produto de mídia e marketing. Quando eles me encontraram, eu já estava por aí, em tudo quanto é lugar, viajando para todo lado. Às vezes, a gente pegava aqueles aviõezinhos, pousava de cidade em cidade, reunindo gente em aeroporto, pregando para milhares no Nordeste, no Norte, no Sul, em qualquer lugar, suando a camisa, anunciando a Palavra. Não era para levantar oferta nem tomar dinheiro. Ao mesmo tempo, eu era capaz de me articular filosófica e teologicamente, de me relacionar com os diferentes, de fazer coisas acontecerem, de traduzir a Palavra de Deus para um contexto social, político e existencial imediato. Eu tinha uma certa irreverência piedosa que me ajudava na comunicação com reverentes, para dar uma chacoalhada nos corações deles, e com irreverentes, para despertar neles algum temor. Sei que as químicas que Deus reuniu para me fazer são singulares. Não são coisas minhas, não, são todas dele. Se eu voltasse aos 19 anos de idade, com os mesmos dons que tenho, e fosse levado para Manaus e tivesse que recomeçar, o produto desse ministério seria outro porque as circunstâncias mudaram. Sei que, por algum fenômeno que só Deus pode explicar, houve um tempo na minha vida no qual eu era um arquétipo muito forte no inconsciente coletivo da comunidade evangélica. Entrava na casa das pessoas com tanta intimidade que dava a elas a sensação de que aquele era um caminho de duas vias.
DEPOIS DE TUDO QUE ACONTECEU, COMO ESTÃO O HOMEM E O PASTOR CAIO FÁBIO?
O homem está completamente consciente de sua fragilidade. Graças a Deus por estar me sentindo tão fraco e tão vulnerável diante da possibilidade do Senhor me encher de sua misericórdia e de sua graça. Não sem muita dor, pois um abismo chama outro abismo, até que Deus deu a primeira espadada e quebrou os primeiros grilhões, aí você começa a se habituar. Mas quero ficar livre daquela catividade para ser escravo de Deus. O pastor Caio Fábio vive um momento singular. Por um lado, não consigo assinar meu nome como pastor, nem como reverendo. Em todas as cartas e e-mails que mando, não uso os títulos de reverendo e de pastor, pois neguei a reverência e relativizei minha presença como pastor na vida das pessoas. Mas as pessoas insistem em me tratar como pastor e como reverendo. Esta é a minha ambigüidade: sei que poderia virar camisa 10 da seleção brasileira, mas nunca deixaria de ser pastor, mesmo que eu ou o mundo inteiro não quisesse. Está dentro de mim. Aliás, tive um sonho complexo sobre isso, no qual eu era levado para pregar na Catedral Presbiteriana do Rio, e minha toga não estava no armário. Aí, alguém disse: "Está num depósito, lá no fundo do galpão." Andávamos por um labirinto enorme e, quando chegávamos, havia uma mulher de cabelos desgrenhados, um rosto estranho e um olhar que me fuzilava. Eu perguntava: "Cadê minha toga?" Ela respondia: "Está ali, pode pegar." Quando eu puxava a toga e a abria, minha carcaça estava toda colada dentro dela. Acordei com aquela sensação de que Deus estava me dizendo que o ministério dado por ele a mim não poderia ser tirado por ninguém, pois as ligações são viscerais. Não foi uma capinha que usei porque me deram. Todo mundo sabe que eu não consultei carne nem sangue quando comecei meu ministério. Eu sei que foi Deus quem me deu, e só Ele pode tirar.